segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Um livro de Mario Quintana


Além do irritante cheiro de perfume, era tudo que havia sobrado dela naquela noite. Um livro do Mario Quintana. "Por acaso, surpreendo-me no espelho: Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu?" leio de frente ao citado espelho.
O maldito livro sabe de tudo. Ele sabe o que eu quero esquecer. Ele não pode mais ficar aqui.
Ele é tudo o que sobrou dela aqui, além do irritante cheiro do perfume, que tantas vezes já esteve em mim, e brincou no meu sono invadindo os meus sonhos.
Era como estar no céu, mas de súbito a página 22 me diz "Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele na inquietação feliz do Purgatório."
Maldito livro e duas vezes maldito perfume que agora me deixa confuso, pois ele faz a presença etérea dentro de mim agora mais real que presença física ao meu lado agora há pouco.
"Tem um poema que eu deixei marcado" ela falou e me entregou o livro. "Isso não quer dizer que é o fim, nós ainda podemos nos falar" e desviou o olhar do meu. "A vida continua, pelo menos você é jovem, saudável e está vivo" foi o que ela disse na seqüência. A página 30 respondeu com orgulho ferido, "Por pior que seja a situação da China, Os nossos calos doem muito mais..."
O marca página está na contra-capa. Olho e vejo um manuscrito e me pergunto por que diabos ela me deu um livro de poesias de Mario Quintana se a poesia que ela queria que eu lesse teve que escrever à mão.
Ergo-me e ouço lá fora a garoa e a página 35 preconiza irônica "Parece que vou sofrer: Pirulin lulin lulin..."
Volto para o que ela tinha escrito e leio. Uma parte está grifada de marca-texto rosa e diz "o segredo é não correr atrás das borboletas, e sim cuidar do seu jardim para que elas venham até você."
Resoluto saio de casa, à mão direita o querosene e os fósforos e à mão esquerda o livro. O perfume me segue como se estivesse preso ao meu nariz.
Tranqüilamente vou ao jardim. Jogo bastante querosene pra que a maldita garoa não atrapalhe. Acendo a pira e queimo o maldito livro e o maldito jardim. "Que morram as borboletas" grito e deixo queimar as rosas e margaridas além de cada uma das páginas.
O livro desprende como por mágica sua última e cruel verdade. Uma ironia eu penso. "Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?"A garoa apaga a chama. Volto pra dentro um pouco mais livre das lembranças. Mas o perfume permanece.

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