Enjoy It ^^.
Essa não é uma resenha comum não, e você sabe o porquê? É que ela tem história... Todos acreditam que por atribuir valores sentimentais aos objetos inanimados seu preço será elevado, mas não para Lourenço, dono e balconista da loja de compra e venda de produtos usados de um decadente cenário metropolitano.
O autor Lourenço Mutarelli, nascido
O livro narra a história do anti-herói Lourenço e seu entediante dia-a-dia na loja de compra e venda de artigos usados da qual é proprietário, mas sua vida muda quando o putrefato cheiro do ralo do pequeno banheiro entupido de seu escritório começa a tomar conta do ambiente. O protagonista começa então a travar uma luta simbólica contra o fedorento ralo, e isso muda sua vida.
Ríspida e até cruelmente a personagem inicia seus jogos com os mais diversos e característicos clientes desesperados que freqüentam o estabelecimento, travando com eles contundentes diálogos em que um quer vender e o outro nem sempre quer comprar, exceto quando o artigo oferecido é uma parte de seu pai, onde o que realmente importa é a satisfação final do anti-herói em ser aquele quem dita as regras.
É imprescindível citar a relação do mesquinho Lourenço que logo no início da trama se vê fissurado quase que psicoticamente pelo maior objeto de desejo nacional, uma bunda. Mas para a personagem essa não é somente mais uma bunda de garçonete de uma lanchonete de terceira categoria na qual tudo que se come faz mal, essa é A Bunda, e seu abissal desejo por ela o leva a entrar em um ciclo vicioso no qual estão presentes ele próprio, a Bunda e o fedorento cheiro do ralo que cresce na medida em que mais Lourenço visita a Bunda, já que para isso ele precisa ir à lanchonete comer as porcarias que lá são servidas.
Além da Bunda e do cheiro do ralo, Lourenço tem pelo menos mais uma obsessão. Durante o decorrer da trama o protagonista que não conheceu o próprio pai começa uma jornada para tentar montar seu progenitor comprando-o aos poucos, peça por peça, membro por membro, olho por olho e, utilizando o nome da personagem clássica de Mary Shelley, dá o nome de “meu pai Frankenstein” àquilo que simboliza o passado fragmentado e cheio de lacunas de sua personalidade.
Para completar o cenário ainda estão presentes inúmeros tipos diferentes de personagens, como por exemplo sua ex-noiva, a qual já havia até enviado os convites do casamento à gráfica, uma dependente química que tem papel fundamental na trama, um fantasma de mulher que assombra sua casa, a empregada doméstica que há anos trabalha para ele mas que Lourenço nunca foi capaz de decorar o nome e até mesmo uma intrigante figura que tem como realização de prazer o estranho hábito de rasgar dinheiro.
De certa forma Mutarelli personifica em seus heróis e personagens retratos da sociedade contemporânea: o trágico e burlesco, movido a decepções, fracassos e muita insegurança de um mundo ficcional totalmente desprovido de concepções ético-morais, o que possibilita ao leitor a cada nova leitura do romance descobrir novas particularidades dos heróis e novos ângulos de percepção da trama e do mesmo modo que o protagonista acaba por se habituar e, algumas vezes, até gostar do fedorento cheiro do ralo, os leitores acabam por gostar do protagonista e dos outros personagens, mesmo sendo eles mesquinhos, egoístas e manipuladores.
Sem dúvida Lourenço Mutarelli conseguiu colocar em suas personagens a mais crua e terrível essência humana, e talvez seja por causa disso que esses miseráveis retratos da sociedade se tornem tão simpáticos e próximos de nós, chegando a nos chocar no final dessa obra prima da literatura contemporânea.